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O monumento de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal, lança luz sobre a valorização da história e memória afro-brasileira e reforça a importância da luta antirracista na sociedade brasileira.
No dia 16 de outubro de 2016, a bailarina e coreógrafa Mercedes Baptista (1921-2014) foi homenageada com a inauguração de seu monumento, um espaço de memória que celebra a trajetória de uma mulher negra e se soma ao esforço de uma agenda internacional antirracista e pela educação patrimonial, disputando pela memória de sujeitos sociais minoritários nos espaços públicos. Situado no Largo de São Francisco da Prainha, no bairro da Saúde, no Rio de Janeiro (RJ), a caminhada até esse monumento é uma visitação ao ar livre de outros espaços de memória, como: o monumento dedicado a Dom João VI (1767- 1826), na Praça XV; o Largo da Candelária, a Capitania dos Portos e o Muro da Patromoria, na Orla Prefeito Luiz Paulo Conde, no Centro do Rio de Janeiro. A estátua foi doada à Zona Portuária pela Curadoria do Acervo Mercedes Baptista. Contou com o apoio do Movimento Artístico da Praia Vermelha, da Prefeitura do Rio de Janeiro e das Secretarias de Cultura e de Conservação de Monumentos e Chafarizes.
A estátua de Mercedes Baptista está localizada numa região que rememora a história da criação do samba carioca, dos primeiros terreiros de candomblé e onde se encontra o Cais do Valongo, local em que cerca de um milhão de africanos sequestrados passaram pelo porto, sendo o maior receptor de pessoas escravizadas, num período de 40 anos após a sua construção em 1811, para o sistema escravista do país, o último a abolir a escravidão na América. Próxima da estátua se encontra a Pedra do Sal, onde fica a Comunidade Quilombola Pedra do Sal, no bairro da Saúde, que foi reconhecida pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural como patrimônio cultural, em 1984.
Uma bailarina na encruzilhada

Mercedes Baptista nasceu em Campos dos Goytacazes. Mudou-se cedo para o Rio de Janeiro. Era apaixonada pelo cinema e pelas artes. Em 1945, começou a estudar dança com Eros Volúsia (1914-2004). Três anos depois, foi aprovada para o Corpo de Baile do Theatro Municipal. Mas, como uma mulher negra, enfrentou diversos obstáculos. Sofreu uma tentativa de sabotagem no concurso para o Corpo de Baile. Não foi informada sobre a data da prova. Impossibilitada de finalizar o concurso com as outras bailarinas, teve que fazer a prova com a equipe masculina, que estava participando também do processo seletivo. Apesar do racismo sofrido, foi incorporada junto com Raul Soares ao Corpo de Baile, sendo os primeiros bailarinos negros do Theatro Municipal. Continuou sendo sabotada pelos membros brancos do Theatro, sendo excluída das cenas, e, quando integrada, colocada ao fundo dos palcos.
Sua trajetória não se limitou ao Theatro Municipal. Colaborou como bailarina e coreógrafa do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado pelo dramatugo e ex-senador Abdias do Nascimento (1914-2011), que tinha como objetivo resgatar os valores da cultura africana, que era reduzida à mera condição folclórica. Com a participação no TEN, Mercedes Baptista conseguiu abrir novas portas no meio artístico. Em 1950, ganhou uma bolsa de estudos na Dunham School of Dance, em Nova Iorque (EUA). A escola de dança tinha bailarinos negros de diversas nacionalidades e desenvolvia um trabalho de pesquisa sobre danças regionais, religião e meio ambiente. Esta pesquisa buscava uma fusão cultural para compartilhar e valorizar a cultura negra, como sugere Paulo Melgaço da Silva.
Quando retornou para o Brasil, percebeu que o corpo de bailarinos e a gestão do Theatro Municipal continuavam racistas e com pouca presença de pessoas negras. Buscou novos caminhos, mas permaneceu no Corpo de Baile até sua aposentadoria. Com sua bagagem cultural, colocou em prática trabalhos de pesquisa sobre as religiões de matriz africana no Terreiro da Goméia do babalorixá Joãozinho da Goméia (1914-1971), em Duque de Caxias. Mercedes, a partir das técnicas da dança popular, clássica e dos rituais religiosos afro-brasileiros, desenvolveu a dança afro. Em 1952, começou a ensinar balé clássico, moderno e afro para alunos negros, chegando a contar com 50 alunos. O Ballet Folclórico Mercedes Baptista surgiu um ano depois dessa experiência, no qual buscou reformular os rumos da dança no Brasil. O grupo se apresentou em diversos espaços e divulgou a cultura afro-brasileira em vários países da Europa e da América. Na década de 60, o Ballet Folclórico se apresentou no palco do Theatro Municipal, colocando Mercedes Baptista como protagonista dos processos de produção, direção e coreografia.
A trajetória de Mercedes também foi marcada pela sua passagem no carnaval, a maior festa popular do planeta, no qual ensinou a dança afro e coreografou para escolas de samba, como Salgueiro, Beija-Flor, Imperatriz Leopoldinense, entre outras. O reconhecimento do legado deixado pelo seu trabalho resultou em homenagens por algumas escolas de samba. Em 2008, a Acadêmicos do Cubango, de Niterói, homenageou a dançarina com o enredo Mercedes Baptista, de passo a passo, um passo. O’Fluminense noticiou a efeméride, mas tentou silenciar a história e o legado da bailarina, trazendo apenas os problemas técnicos da escola. “Com o enredo ‘Mercedes Baptista, de passo a passo, um passo’, do carnavalesco Wagner Gonçalves, a verde-branco homenageou a fundadora da extinta Academia de Danças étnicas, a bailarina Mercedes Baptista. O desfile empolgou a torcida, mas apresentou alguns problemas”, disse o jornal.
Corpo monumento que celebra a história afro-brasileira
No dia 25 de maio de 2020, doze dias após a efeméride do 13 de Maio, o afro-americano George Floyd (1973-2020) foi estrangulado pelo ex-policial Derek Chauvin (1976-), devido à uma denúncia de suposta nota falsa num supermercado em Minnesota, nos EUA. O policial foi condenado a cumprir 22 anos de prisão por assassinato. Houve diversas manifestações e mobilizações contra o racismo e a violência policial na América. Os protestos antirracistas também pautaram as estátuas de figuras que alimentaram ideias e práticas racistas. No Brasil, a estátua de Borba Gato (1649-1718), um bandeirante e escravocrata que representa a violência contra indígenas e negros, e outros personagens históricos foram objetos de intervenções em manifestações organizadas pela sociedade civil e movimentos sociais. O debate sobre a representação da violência pelos monumentos ganhou o espaço público. Esses monumentos em homenagem a racistas, estupradores e assassinos são lidos socialmente como espaços de memória que legitimam os genocídios étnico-raciais.
Ao caminhar pelo centro do Rio, deparamo-nos com estátuas de personagens históricos, museus dedicados à arte, marcos históricos, entre outros. São representações históricas do Rio de Janeiro. Ao olhar para um busto vemos um fragmento de memória que conta uma história a partir de sua narrativa. Há diversos monumentos dedicados àqueles que lideraram ou participaram de eventos brutais que mataram milhares de pessoas, mas que são elegidos como heróis da pátria pelo Estado brasileiro. Os monumentos que homenageiam grupos historicamente oprimidos são relegados ao esquecimento e abandono.
O monumento, como patrimônio cultural, é uma representação da identidade e um lugar de memória. Dos 358 monumentos do Rio de Janeiro apresentados no levantamento do jornal O Globo, menos de 10% retratam pessoas negras. Este dado evidencia o quanto as ações e as narrativas oficiais do Estado ainda privilegiam a memória da população branca. A violência simbólica através do patrimônio gera um impacto na formação da identidade nacional e afeta grupos que ainda sofrem com as consequências desse passado escravista. Os monumentos do Rio Janeiro reforçam a ideia de que os negros pouco participaram da formação do país. Essa política de regulação da memória pelo Estado por meio dos monumentos reproduz desigualdades e sistemas de violência à medida em que dita quais memórias são dignas de homenagens e quais devem ser secundarizadas.

O monumento à Mercedes Baptista é uma conquista importante para a valorização da história da população negra, o direito à memória e o esforço de reconstrução da identidade negra. A existência de seu monumento ilumina uma trajetória que vinha sendo apagada pelo racismo. Esse monumento se soma a um conjunto de patrimônios culturais que contam histórias de grupos sociais historicamente marginalizados, mas o racismo ainda tenta silenciar a sua memória e seu legado. Não há vestígios da memória de Mercedes no Theatro Municipal, o que pode significar uma tentativa de negação da contribuição da bailarina para a instituição. Mesmo que esta tenha a homenageado numa atividade em seu canal no YouTube, em 2021, seu busto não está ao lado de outros de personalidades brancas que existem no espaço institucional.
Mercedes não ocupa um lugar de memória no Theatro Municipal. A instituição continua como um lugar elitista, que não promoveu uma política de preservação da memória de Mercedes Baptista, a bailarina que tentaram esconder por detrás dos palcos. “O Brasil não vê a mulher negra, hoje em dia, como uma bailarina”, comentou a bailarina Ingrid da Silva. A placa identificatória do monumento de Mercedes Baptista a coloca como “ícone da Dança Afro no Brasil”, mas silencia sua trajetória como bailarina. Há uma tentativa de seu apagamento como bailarina clássica. A memória de uma mulher negra como bailarina ainda parece ser uma afronta.
Com a renovação dos estudos sobre a escravidão e o pós-abolição a partir da década de 1980, a população negra foi deslocada, pelo menos em grande parte desses, de um lugar de sofrimentos e estigmas racistas. A história de Mercedes não apenas combate à ideia de superioridade do “homem” branco, como disputa a partir de seu monumento a narrativa sobre a história da população negra, contando suas lutas para a construção de um futuro para os afrodescendentes num país marcado pelas desigualdades geradas pelo racismo. Mas, a exclusão da história do negro persiste na consciência nacional, disputando com a perspectiva eurocêntrica de civilização, que ainda tende a reforçar a ideia de miscigenação, embranquecimento da população e não respeita a pluralidade étnico-racial do país.
Esse esforço de lembrar faz emergir histórias ainda não conhecidas ou esquecidas. É o lugar onde o passado, mesmo aquele não registrado oficialmente, pode passar a ser conhecido, revelando perspectivas e leituras alternativas. “A gente saca que a consciência faz tudo pra nossa história ser esquecida, tirada de cena”, disse a socióloga Lélia Gonzalez (1935-1994). A história de Mercedes Baptista evidencia sua luta por espaço, reconhecimento em um ambiente racista e elitista, e construção de um futuro para a população negra. Seu monumento conta uma história do racismo, mas também das frentes de luta e dos projetos de resistência criados pelos negros para combater às desigualdades.
Completados dez anos de sua morte, o monumento de Mercedes celebra a luta pela liberdade e contra o racismo, referenciando a necessidade de uma segunda abolição. É preciso reconhecer que a educação patrimonial também deve ser um instrumento para o reconhecimento e valorização desse monumento. Precisamos, a partir da Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileiras e africanas, fomentar a contação da história dessa bailarina negra a partir de seu monumento, possibilitando que crianças negras da educação básica tenham acesso a outras histórias de pessoas negras, reforcem suas identidades étnico-raciais pela leitura positiva de si mesmas e outros sujeitos da comunidade. O “racismo institucionalizado dá origem a todo tipo de violência contra um povo inteiro”, disse Abdias do Nascimento. O racismo ainda tem influenciado na valorização de uma memória de pessoas brancas responsáveis por ciclos terríveis de violência, como o genocídio dos povos indígenas, que passaram de 5 milhões para um pouco mais de 1,6 milhão no Brasil, segundo o censo do IBGE de 2022. A preservação da memória de Mercedes Baptista deve ser vista como peça importante da reestruturação da consciência nacional em torno da história afro-brasileira.
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NEVES, Ana Luiza Izidio Barbosa das. O corpo monumento de Mercedes Baptista. História Editorial, v.1, n. 1, 3 dez. 2024. DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.14263172. Disponível em: https://historiaeditorial.com.br/o-corpo-monumento-de-mercedes-baptista. Acesso em: 3 dez. 2024.
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Respostas de 4
Que esse seja o primeiro de muitos artigos que você possa escrever, muito orgulho de ver você brilhar que venha mas artigos como este você vai longe.
Fantástico parabéns querida vc vai longe
Parabéns Ana Luiza ,vc vai colher muitos frutos.
Parabéns Ana Luiza ,vc vai colher muitos frutos.vc vai alcançar seus objetivos.