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A inauguração do Grand Egyptian Museum evidencia tensões entre memória, patrimônio e poder, reabrindo o debate sobre a narrativa histórica e a repatriação de artefatos africanos
No dia 1º de novembro de 2025, às 19h30 (fuso horário do Cairo), foi inaugurado o Grand Egyptian Museum [Grande Museu Egípcio], mais conhecido pela sigla GEM, na cidade do Cairo, capital do Egito, localizada no Norte da África ou África Setentrional. A noite foi marcada por um show de drones que deu boas-vindas a diversas lideranças internacionais, como ministros, presidentes e membros de realezas estrangeiras, ao “país da paz”. O espetáculo faraônico, com bailarinos trajados à moda dos tempos de pompa e poder dos reis e rainhas egípcios, abrilhantou o evento e reforçou a importância do museu para o mundo.
A concepção do projeto remonta a 1992, durante o governo de Hosni Mubarak (1928–2020), mas sua execução teve início apenas em 2005. O Ministério do Turismo e das Antiguidades encomendou o projeto, que passou a ser realizado pela construtora belga Besix, em parceria com a egípcia Orascom Construction, contando ainda com apoio técnico e financeiro do Japão. Uma inauguração parcial ocorreu em outubro de 2024, com a maioria das galerias abertas à visitação. A cerimônia oficial, inicialmente prevista para julho de 2025, foi adiada para novembro. Diversos fatores retardaram a inauguração definitiva, como a Primavera Árabe (2011), a pandemia de COVID-19, golpes militares e conflitos armados, como as guerras entre Ucrânia e Rússia e entre Israel e Irã.
Em 2002, o Egito abriu um processo seletivo internacional de design, no qual foi escolhida a proposta de Róisín Heneghan e Shih-Fu Peng, do escritório de arquitetura irlandês Heneghan Peng Architects. A empresa, contudo, não participou das etapas de execução, que foram modificadas para atender às expectativas das equipes técnicas, às demandas do governo e às necessidades funcionais do próprio museu e de seu acervo, embora alguns elementos do projeto original tenham sido preservados. Atualmente, o museu é administrado pela empresa de construção egípcia Hassan Allam Holding.
A seção Radar da Imprensa que tem como objetivo analisar como temas históricos ganham espaço no debate público por meio da imprensa, é inaugurada com as notícias sobre a abertura do GEM. O museu, que funciona diariamente das 9h às 18h (fuso horário do Cairo), motivou um levantamento de 114 reportagens publicadas por jornais brasileiros e portugueses entre 30 de outubro e 5 de novembro, sem registros de matérias em outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A invenção do monumento e a construção do acervo
O Grand Egyptian Museum (GEM) foi construído para ser um dos maiores museus do mundo dedicados à história de uma única civilização: o Egito. Seu vasto acervo está salvaguardado por uma estrutura monumental. Localizado ao lado das Pirâmides de Gizé, o edifício possui quinhentos mil metros quadrados e formato triangular, com fachadas de vidro e telhado alinhado ao pico das pirâmides. O exterior é revestido por hieróglifos e alabastro translúcido, cortado em triângulos, e a entrada principal assume a forma de uma pirâmide.
No interior, uma escadaria monumental de seis andares, ladeada por 87 estátuas de reis e rainhas que representam sete milênios de história e tradição, conduz os visitantes a doze galerias cronológicas e temáticas, dedicadas à realeza, aos sistemas religiosos e à sociedade egípcia — do período pré-dinástico ao copta. Ao final desse grande percurso histórico e cultural, os turistas têm a oportunidade de contemplar as Pirâmides de Gizé em um espetáculo visual inédito na história do turismo cultural egípcio.

O acervo abriga 100 mil artefatos, dos quais 50 mil estão disponíveis à visitação pública. Na entrada, ergue-se um obelisco de 16 metros e 87 toneladas, datado do período de Ramsés II. No interior, os visitantes são recepcionados pela estátua suspensa de Ramsés II, que domina o átrio principal. O acervo inclui papiros milenares, têxteis, cerâmicas, sarcófagos, restos humanos mumificados, a Placa de Narmer, a cabeça do faraó Akhenaton e os tesouros da rainha Hetepheres. Entre os destaques está a coleção de objetos do túmulo de Tutancâmon, composta por 5 398 peças exibidas em conjunto pela primeira vez. O conjunto reúne joias, oferendas de alimentos em conserva, sandálias, armaduras, leitos cerimoniais, bigas de guerra, o trono real, carruagens e a famosa máscara mortuária dourada.
Além do acervo, o museu conta com salas de exposição, auditórios, biblioteca, museu infantil, centro de conferências, lojas e restaurantes. Dispõe também de 17 laboratórios de conservação e restauração, interligados ao edifício principal por um túnel. Um deles, ativo e visível ao público por meio de uma estrutura de vidro, abriga o processo de restauração do barco do faraó Quéops, de 4 500 anos, transferido da Grande Pirâmide em 2021. O museu também se destaca por sua acessibilidade, com rampas, elevadores e réplicas de peças acompanhadas de legendas em braille.
Uma história no debate público pela imprensa
O aspecto que interessa ao Radar da Imprensa é refletir sobre a maneira como os fatos históricos são apresentados ao público leitor, com o intuito de promover um debate público sobre questões históricas importantes para as sociedades do Sul e do Norte Global, como a repatriação de artefatos arqueológicos e históricos ligados à realeza egípcia, levantadas pela imprensa dos países da CPLP.
O acervo ainda não está completo. Alguns artefatos foram expropriados por países europeus durante o processo de colonização da África ou roubados para serem contrabandeados e vendidos em feiras de arte ilegais ou em museus europeus. A repatriação desses artefatos históricos foi um dos objetivos que motivaram a criação do GEM, resultando na organização de petições online elaboradas pelo ex-ministro de Estado Zahi Hawass. Os três principais artefatos que são objeto dessas petições são a Pedra de Roseta (Museu Britânico, Reino Unido), o Zodíaco de Dendera (Museu do Louvre, França) e o Busto de Nefertiti (Neues Museum de Berlim, Alemanha).
A inauguração do GEM, concebido como o maior museu dedicado a uma única civilização, e a construção de sua imagem enquanto espaço de preservação da memória da humanidade reforçam um movimento internacional que ganhou destaque na imprensa brasileira: a devolução desses artefatos aos seus lugares de origem. A Holanda aderiu a esse movimento, iniciando a devolução do busto de 3 500 anos de um dos altos funcionários do reinado de Tutmés III, apreendido em 2022 pelas autoridades holandesas. Mantém-se, contudo, a pressão contínua sobre o Reino Unido e outros países europeus por parte da comunidade internacional, de egiptólogos e da própria sociedade egípcia.
O museu apresenta uma estrutura que busca dialogar com novas formas de fazer história pública, como réplicas de artefatos com legendas em braille, legendas em formato multimídia voltadas à geração Z e exposições interativas em realidade virtual. O uso de ferramentas digitais, já incorporadas ao cotidiano das pessoas, desperta o interesse do público e o aproxima de uma história apresentada em linguagem mais acessível. Os artefatos e as imagens exibidas nas galerias são educativas, sobretudo quando acompanhados de legendas que auxiliam na compreensão do contexto histórico representado.
As matérias brasileiras destacam a representação dos reis e rainhas e seus legados para o Egito por meio dos artefatos arqueológicos presentes naquele país e nos museus europeus. A ausência de escuta a historiadores brasileiros especialistas em estudos sobre a África reforçou a ideia de uma história centrada apenas na realeza, desconsiderando a relevância dos vestígios arqueológicos deixados pelos grupos sociais situados na base da pirâmide social. A importância desses artefatos para compreender uma “história vista de baixo” foi absolutamente ignorada, desperdiçando a oportunidade de aproximar o público de capítulos fundamentais da história da humanidade.
O GEM é apresentado como um museu voltado à preservação do patrimônio universal da civilização egípcia, conferindo ao Egito o papel de guardião do patrimônio arqueológico global, uma espécie de elo entre as sociedades do passado e do presente. Nesse sentido, apenas os monarcas são reconhecidos como protagonistas de uma história que, na verdade, foi construída pela colaboração de múltiplos sujeitos históricos — senhores e escravizados. A impressão que ficou é que a imprensa brasileira e as elites globais, inclusive as egípcias, ainda consideram que abordar a história das minorias não contribui para a venda de ingressos. No apagar das luzes, essas minorias permanecem no mesmo lugar histórico — o da inexistência —, e a África continua a sofrer o movimento persistente de apagamento e epistemicídio que lhe nega sua filha mais pródiga: a civilização do Egito.
* As 114 matérias jornalísticas da CPLP analisadas para este Radar da Imprensa podem ser consultadas clicando aqui.
SANTANA, Geferson. Uma civilização da África no apagar das luzes do GEM. História Editorial, 11 nov. 2025. (Radar da Imprensa). Disponível em: https://historiaeditorial.com.br/uma-civilizacao-da-africa-no-apagar-das-luzes-do-gem. Acesso em: 11 nov. 2025.
Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Vinculado a revistas e grupos internacionais de pesquisa, como o Laboratorio de Investigación en Literatura y Cultura del Océano y Catástrofes da Cátedra Fernão de Magalhães do Instituto Camões (IC), Portugal, e da Universidad de Playa Ancha (UPLA), Chile. Há 10 anos trabalha com edição de materiais didáticos, editor de livros e revistas da área de História.
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