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Uma prática antirracista no Wikidata

Oficinas Mais Negritudes discutem desigualdades raciais no Wikidata e propõem ações colaborativas para ampliar a visibilidade de pessoas negras

Arte para divulgação do Ciclo de oficinas Mais Negritudes 2025. Fonte: Ana Vitória Farion. 2025. [Wikimedia Commons]

O Wikidata ainda não representa a diversidade racial dos artistas e intelectuais do Brasil. O pertencimento racial ou étnico-racial raramente aparece como um dado relevante na organização de um banco de dados estruturado que nos permita compreender, de forma mais ampla, a produção artístico-cultural e científica do país. Essa ausência revela que, para dar visibilidade a pessoas negras e indígenas, é necessário realizar um esforço consciente de racialização desses sujeitos a partir de suas declarações no Q identifier (QID). Ao mesmo tempo, é fundamental ter o cuidado de não restringir esse processo apenas a pessoas negras e indígenas, evitando reproduzir a ideia de que apenas esses grupos têm raça, enquanto outros seriam neutros ou universais. 

No dia 7 de outubro, o Projeto Mais Teoria da História na Wiki, numa parceria com o laboratório História Editorial, promoveu a oficina “Estruturando dados para a visibilidade de pessoas negras”, com o objetivo de discutir as características básicas e os critérios de notoriedade no banco de dados estruturados do Wikidata. A atividade abordou a estrutura de um item de dados e de uma declaração de informação, além de propor exercícios práticos como a inclusão de declarações, a inserção de uma infocaixa na Wikipédia com dados provenientes do Wikidata e a criação de itens novos, como descrito na página do evento.

As oficinas Mais Negritudes na Wiki

O Projeto Mais Teoria da História na Wiki desenvolve suas atividades no campo da história pública, com o propósito de promover um conhecimento livre e colaborativo por meio dos projetos da Fundação Wikimedia. Segundo o site do projeto, o objetivo é “ampliar o debate sobre estudos de gênero, sexualidade, raça e as epistemologias do Sul Global, fortalecendo a presença desses temas na Wikipédia, no Wikidata e no Wikimedia Commons, assim como no campo da Teoria da História”.

Agenda de oficinas do evento Mais Negritudes em Teoria da História na Wiki 2025. Fonte: João Paulo Mota. 2025. [Wikimedia Commons]

Como parte dessas ações, o Ciclo de Oficinas Mais Negritudes em Teoria da História na Wiki ocorre entre os dias 7 e 18 de outubro, com uma série de encontros de nível básico voltados à edição nos projetos Wikipédia, Wikidata e Wikimedia Commons. Os “Ciclos de Oficinas ocupam um lugar de destaque na nossa visão estratégica. Isso porque essas atividades são organizadas a partir de temáticas que buscam preencher lacunas na Wikipédia, no Wikidata e no Wikimedia Commons, especialmente sobre gênero, raça, etnia e sexualidade”, explicou Sarah Pereira Marcelino da Silva, coordenadora de Treinamento e Capacitação do projeto.

Os “Ciclos de Oficinas oferecem espaços de capacitação na forma de encontros síncronos pelo Google Meet, para pessoas de todos os níveis de conhecimento acerca dos projetos Wikimedia, com o objetivo de criar espaços dedicados à edição, mas também à reflexão e ao debate. Acreditamos que a importância dos Ciclos de Oficinas para os projetos Wikimedia consiste exatamente na capacitação de novas pessoas editoras, assim como no aperfeiçoamento de usuários já experientes, para trabalharem ativamente na diminuição das lacunas sobre temas minoritários na Wikipédia, no Wikidata e no Wikimedia Commons”, acrescentou a coordenadora.

As oficinas promovidas pelo Mais Negritudes reforçam a importância de conscientizar estudantes, professores, pesquisadores e demais integrantes da sociedade civil sobre o papel de se tornarem editores nessas plataformas — contribuindo para uma ciência aberta, diversa e antirracista. “É fundamental que as universidades olhem para a Fundação Wikimedia e seus projetos, como a Wikipédia, Wikimedia Commons e o Wikidata”, disse Aly Brenner, mestranda pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das facilitadoras do ciclo.

Visibilizando pessoas negras no Wikidata

A oficina “Estruturando dados para a visibilidade de pessoas negras”, realizada de forma remota das 19h às 22h, contou com a participação de 18 oficinistas, entre estudantes e professores da educação básica, estudantes de graduação e pós-graduação de instituições públicas de ensino superior, além de bibliotecários, comunicadores científicos, pesquisadores e jornalistas. Além disso, destaca-se que a oficina realizou-se numa parceria com o laboratório História Editorial, coordenado pelo professor Geferson Santana, e contou com a participação de seus membros — estudantes de graduação em História e a pesquisadora Dra. Tatiane Oliveira (USP).

Participantes da oficina 01 “Estruturando dados para a visibilidade de pessoas negras”. Fonte: João Paulo Mota. 2025. [Wikiedia Commons]

O encontro teve como objetivo não apenas apresentar listas de intelectuais e artistas afrodiaspóricos para a criação e o aprimoramento de seus QIDs, mas também aprofundar o debate sobre a invisibilidade desses sujeitos em bancos de dados estruturados como o Wikidata. Essa invisibilidade contribui para o apagamento de figuras fundamentais na constituição de um pensamento crítico sobre o epistemicídio afro-brasileiro e indígena. “Ao pensar nas diversas desigualdades epistemológicas, uma área se destaca: Black Digital Humanities, campo interdisciplinar, que, por sua vez, vai refletir, em especial, sobre as populações pretas que muitas vezes no campo das tecnologias são ainda mais alienadas”, apontou Brenner, uma das pessoas facilitadoras da oficina.

As narrativas e epistemologias europeias ocupam um espaço privilegiado em bancos de dados como o Wikidata — reflexo de uma formação histórica em que o acesso à história afro-brasileira e indígena foi sistematicamente limitado na educação básica. Mesmo com a promulgação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornam obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena, pouco se avançou na consolidação de um repertório cultural amplo e diverso. Passadas mais de duas décadas desde a primeira lei, o conhecimento sobre a contribuição negra e indígena ainda é restrito, o que impacta diretamente na capacidade de criar e editar itens sobre esses sujeitos nas plataformas da Fundação Wikimedia.

Durante a sessão, pude compreender a importância fundamental da correta identificação e registro da raça negra como um validador crucial para reequilibrar narrativas históricas e científicas globais. Percebi como a catalogação precisa de contribuições da comunidade negra e afrodescendente na Wikidata se constitui como um contraponto necessário às versões hegemônicas da história, particularmente no que concerne às descobertas e avanços científicos promovidos por estes grupos”, explicou Neusa e Silva, oficinista e jornalista angolana.

Mas é importante ressaltar: pessoas brancas também devem ser racializadas nesses bancos de dados e nos demais projetos da Fundação Wikimedia. Fazer isso é essencial para retirá-las do lugar de universalidade e “não cor”. A racialização das pessoas negras, historicamente, cumpriu a função de criar hierarquias e sustentar sistemas de desigualdade e reprodução do racismo. “É super importante considerar o Wikidata e contribuir para que as diversas lacunas existentes de pessoas, conceitos e obras negras estejam cada vez mais presente”, reforçou Aly Brenner. 

Criar uma consciência crítica ao editar um item no Wikidata ou um verbete na Wikipédia é, portanto, uma oportunidade para racializar também as pessoas brancas e colocar em evidência os lugares de privilégio que ocupam em escala global. Trata-se de um gesto político, antirracista e epistêmico que reconfigura o modo como a história é narrada e quem é reconhecido como sujeito dela.

Como citar esta notícia

SANTANA, Geferson. Uma prática antirracista no Wikidata. História Editorial, 16 out. 2025. (Notícia). Disponível em: https://encurtador.com.br/hiA5y. Acesso em: 16 out. 2025.

Geferson Santana

Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Vinculado a revistas e grupos internacionais de pesquisa, como o Laboratorio de Investigación en Literatura y Cultura del Océano y Catástrofes da Cátedra Fernão de Magalhães do Instituto Camões (IC), Portugal, e da Universidad de Playa Ancha (UPLA), Chile. Há 10 anos trabalha com edição de materiais didáticos, editor de livros e revistas da área de História.

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