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O “sangue infecto” nas terras Brasilis

A colonização, apoiada pelos jesuítas, inseriu os africanos e indígenas num sistema violento de hierarquização racial que garantia privilégios aos colonos brancos e impedia a ascensão social dessas minorias raciais na América colonial.

Artigo atualizado em: 20 out. 2024

Crédito da imagem:  Brasiliana Fotográfica/ Biblioteca Nacional.

No Brasil, a população negra continua vítima do racismo. A ideia de “negro” foi inventada na travessia forçada dos africanos pelo Atlântico. A plantation deu significado social para sua existência e para as posições sociais que esses sujeitos escravizados assumiram no sistema colonial da América, como assegurou o historiador camaronês Achille Mbembe.

Esse sujeito coisificado, sequestrado da África, foi inserido no processo de expansão do capitalismo como mão de obra forçada para a produção de riquezas.  Mbembe explica que a entrada da colônia no sistema capitalista mercantil e a adoção de formas mais elaboradas de mecanização e controle do trabalho escravo explicitam que o capital nunca finalizou seu processo de acumulação primitiva, e que os mecanismos raciais foram fundamentais para seu desenvolvimento.

Escravizados no cenário da Fazenda de Quissaman pris de Campos, Rio de Janeiro. Fonte: Louis-Julien Jacottet (1806-1880), Charles Ribeyrolles (1812-1860). 1859-1961. [Arquivo Nacional].

O racismo colonial foi uma força poderosa que construiu um sistema de desigualdades e opressões. A civilização europeia e seus representantes passaram para a posição de agentes responsáveis pela manutenção deste sistema hierárquico entre as raças usando critérios de sangue e de linhagem. Esta ideia de moralidade está atrelada à religião como “marcador civilizacional”, que tomou o “sangue”, no sentido biológico e de linhagem, para definir tratamentos diferenciados às raças consideradas “infectas”. A raça estava associada à ideia de linhagem, no sentido de genealogia, e “sangue”. O último elemento definiu a ideia de raça até o século XVIII. As “raças infectas”, como mouros, judeus, indígenas, negros e outras, passaram a ocupar posições de subalternidade e, em alguns contextos, foram perseguidos e excluídos de cargos e espaços de privilégios.

A estrutura social foi montada pelos colonizadores para impossibilitar a ascensão social de negros livres numa sociedade de produção escravista. Alguns libertos, no entanto, conseguiram ascender socialmente a partir da prática do comércio nos espaços públicos, como as quitandeiras. O colonizador, e mesmo os plebeus brancos, tinham vantagens em relação aos escravizados (negros e indígenas), e alimentaram relações de violência e opressão, como a exploração do trabalhado forçado, estupro das mulheres escravizadas, imposição cultural. 

O tratamento dispensado aos subalternos dependia de critérios de semelhanças biológicas com os senhores. No clássico relato Cultura e opulência do Brasil, do jesuíta italiano André João Antonil (1649-1716), publicado em 1711, em Lisboa, Portugal, há diversas denúncias de crueldade praticadas contra escravizados. O Brasil era o “inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas”, disse o padre jesuíta.

As violências dos senhores eram mecanismos de dominação, tornando as questões raciais na América ainda mais complexas quando se observam os diferentes tratamentos que os escravizados recebiam. Os escravizados “mulatos”, que eram os mais claros, eram melhores tratados frente aos africanos. O jesuíta Antonil chegou a afirmar que muitos desses mulatos eram filhos de senhores. Essa relação consanguínea e de afetividade gerava uma atmosfera de paciência e piedade em relação aos erros cometidos pela prole escravizada.

O mulato foi construído no imaginário social da branquitude como um perigo para a ordem senhorial e à ideia de moralidade da época. A mulata, que também tem um sentido animalesco, era vista como promíscua e um corpo pecador, que depois de forras continuava como a “ruína de muitos” pelos serviços sexuais que algumas dessas mulheres prestavam para sobreviver numa sociedade que limava qualquer possibilidade de ascensão social.

A história do racismo na sociedade colonial


Nos séculos XIX e XX, cânones como Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851-1914) e João Capistrano Honório de Abreu (1853-1927) revelaram características racistas da sociedade colonial, mas involuntariamente. O período era alimentado pelas relações racistas. A inovadora obra historiográfica Capítulos de história colonial (1500-1800), de Abreu, publicada em 1907, apresenta situações onde o racismo era mais evidente, nas quais o mulato, sujeito racializado e apresentado com características de degenerescência, surge como aquele que conseguiu ascender socialmente na passagem do século XVII para o XVIII. As ideias de Abreu e Sílvio Romero também refletem o racismo à medida em que reproduzem ideias estereotipadas, reforçando o sistema de exclusão. Mas, que contribuem para entendermos o racismo colonial.

A segregação racial era intensa nas corporações militares e em ordenações religiosas. As raças “infectas” agonizavam “no exclusivismo dos corpos armados, como o dos Henriques, composto só de pretos, as confrarias, de que algumas só admitiam pretos, pardos ou brancos, na especialização de certos padroeiros, como a Senhora do Rosário, São Benedito, São Gonçalo Garcia”. Mesmo intelectuais racistas, como Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951), reconheciam a existência do “preconceito de cor” das altas classes coloniais, como as instâncias militares e jurídicas, até o final do século XVIII. A história do racismo foi usada por alguns desses intelectuais para negá-lo no século XX e reforçar a ideia de ascensão social dos afro-brasileiros, compondo o itinário discursivo que se tornaria clássico em Casa Grande & Senzala, publicado em 1933, de Gilberto Freyre (1900-1987).

As relações raciais no período colonial estavam orientadas por estas ideias. Capistrano de Abreu disse que o ingresso de membros da família em ordenações religiosas serviu como um atestado de “pureza de sangue” e da própria linhagem familiar. Era recorrente no período colonial o uso dos termos “sague infecto” e “sangue misturado”. Sobre este aspecto, podemos mencionar as constituições sinodais do arcebispado da Bahia, redigida em 1707 e publicada entre 1719-1720, que se baseavam nas que estavam em vigência em Portugal. Os candidatos à ordenação deveriam ser “isentos de qualquer mácula racial de ‘judeu, mouro, mourisco, mulato, herético ou de outra alguma infecta nação reprovada’”. A pureza de sangue deveria ser comprovada por um inquérito judicial.

No inquérito, “sete ou oito cristãos – ‘velhos’ prestavam um juramento de conhecimento pessoal testemunhando que pais e avós de ambos os lados estavam isentos de quaisquer máculas raciais ou religiosas. Nos casos em que se provava que existia algum “sangue defeituoso” ancestral, podia obter -se uma dispensa do bispo local ou da Coroa, tal como acontecia também em relação a outros impedimentos judiciais como, por exemplo, nascimento ilegítimo e deformidade física. […]. Além disso, era sempre mais fácil obter uma dispensa se o candidato tivesse qualquer remoto antepassado ameríndio ou protestante europeu de raça branca do que se lhe corresse nas veias algum sangue judeu ou negro. Todas as ordens religiosas que se haviam fixado no Brasil mantiveram uma discriminação racial rígida contra a admissão de mulatos”, disse o historiador Charles Boxer (1904-2000).

Os documentos sobre o Império ultramarino português evidenciam o preconceito racial que afetou os cristãos-novos, que foram os judeus convertidos forçadamente ao catolicismo na última década do século XV, os escravizados e seus descendentes livres. A sociedade colonial os desumanizou e instituiu um sistema que justificasse as desigualdades e exploração pelas instituições.

Fotografia da indígena Diacuí e seu marido Ayres Câmara Cunha, na década de 1950, no Rio de Janeiro. A indígena fora estuprada e forçada a se casar com esse homem branco, reforçando que partes de uma estrutura colonial sobreviveu à modernidade. Fonte: Reprodução da Marie Claire/ GLobo. 2023. [Instituto Moreira Sales].

O jesuíta Padre António Vieira (1608-1697) pregava que os escravizados africanos deveriam suportar seus sofrimentos com resignação e fé. A recompensa seria o paraíso. Convencido da superioridade do homem branco, usou a religião como critério de civilização, elevando a figura do branco e católico em relação aos negros, considerados como fetichistas e animalizados. A régua de uma falsa moral e os aspectos biológicos construíram hierarquias e justificaram a escravidão dos africanos e o trabalho servil dos indígenas.

Os jesuítas eram propensos à crença da “amabilidade” com os indígenas, numa posição evidentemente paternalista, criando uma hierarquia racial entre indígenas e negros. O casamento entre pessoas brancas e negras não era bem visto, mas o mesmo não se aplicava aos indígenas. Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o famoso Marquês de Pombal, que administrou a América Portuguesa sem nunca ter pisado os pés no Brasil, acreditava que os jesuítas dificultaram a assimilação dos indígenas à sociedade colonial.

Os jesuítas consideravam o “amancebamento” entre indígenas, brancos e negros como um pecado. O próprio Antonil mencionou isto como um problema a ser superado pela sociedade colonial. O fato é que a prática do casamento pouco funcionava, mesmo entre os escravizados, devido à intervenção dos senhores. Os padres viam o casamento como solução para o “amancebamento” entre as raças, mesmo entre aqueles pertencentes ao mesmo grupo; e a miscigenação entre brancos e indígenas. As barreiras eram estabelecidas para serem intransponíveis aos grupos raciais não brancos, como o casamento com pessoas negras, por representar um perigo à linhagem.

As barreiras impostas pelos jesuítas fizeram Pombal homologar, entre 1775 e 1778, decretos que estimularam o casamento entre soldados brancos e mulheres indígenas. No dia 4 de abril de 1755, Pombal publicou um alvará autorizando o casamento entre colonos e indígenas, sem que perdessem seus status sociais. Os privilégios foram assegurados e ampliados. Pombal exigiu que seus vassalos e descentes não fossem tratados como “caboucolos” ou outro adjetivo pejorativo. O descumprimento do alvará poderia ocasionar em deportação dos infratores.

Os decretos pombalinos “colocaram os aborígenes cristianizados exatamente ao mesmo nível dos moradores brancos, em teoria e segundo a lei, não trouxeram qualquer diferença na prática a este respeito”. As políticas pombalinas, por outro lado, consideravam os negros como raça de “sangue infecto”. Há registro de um chefe ameríndio que se casou com uma mulher negra e foi degredado, em 1771, pelo “ato imoral” e por ter “maculado seu sangue”. Estas atitudes continuaram mesmo depois dos movimentos de independências do Brasil.

A retomada ao funcionamento das práticas racistas no período colonial ajuda-nos a entender como as estruturas dessa sociedade permanece em nosso tempo. Outras palavras são usadas em substituição a “sangue infecto”. Basta lermos as manchetes de jornais sobre o tratamento que atletas afro-brasileiros ou africanos recebem dos torcedores de clubes europeus. Mesmo no Brasil, termos como “macaco” ou “empregada” são recorrentes no tratamento racista dado a membros da população negra. As violências continuam de maneira infinitamente mais sofisticadas, como o genocídio praticado pelo Estado brasileiro contra os jovens negros, matando um a cada 23min, ou mesmo as mulheres negras, que são violentadas a cada 6 ou 8min. As tentativas de ingresso em cargos socialmente assumidos por pessoas brancas são barradas por feedbacks largamente usados por recrutadores brancos, a exemplo de “Você não faz o perfil”, o que significa, em outras palavras, que o candidato não é uma pessoa branca. Este é um problema que tem raízes profundas.

Referências

ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800). Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998.

ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil: por suas drogas e minas. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2011. v. 160. (Coleção Biblioteca Básica Brasileira).

BOXER, Charles Ralph. O Império marítimo português: 1415-1825. 1. ed. Lisboa: Edições 70, 2011.

BOXER, Charles Ralph. Relações raciais no império colonial português (1415-1825). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução Claudio Willer. São Paulo: Veneta, 2020.

COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018.

ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1960.

VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1933. (Coleção Brasiliana, v. 10).

VIANNA, Oliveira. Populações meridionais no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973. v. 1.

Como citar este artigo

SANTANA, Geferson. O “sangue infecto” nas terras Brasilis. História Editorial, [Online], 11 ago. 2024. Disponível em: https://historiaeditorial.com.br/o-sangue-infecto-nas-terras-brasilis. Acesso em: 11 ago. 2024.

Geferson Santana

Historiador, professor e editor. Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Vinculado a revistas e grupos internacionais de pesquisa, como o Laboratorio de Investigación en Literatura y Cultura del Océano y Catástrofes da Cátedra Fernão de Magalhães do Instituto Camões (IC), Portugal, e da Universidad de Playa Ancha (UPLA), Chile. Há 10 anos trabalha com edição de materiais didáticos, editor de livros e revistas da área de História, e pesquisador comprometido com a divulgação científica.

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