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José do Patrocínio, o "Tigre da Abolição", e seu Manifesto combatente

O crime de manutenção da escravidão e do tráfico de escravizados, no século XIX, no Brasil, foi reiteradamente atacado pelo abolicionista José do Patrocínio, que fez da luta antiescravista sua causa de vida.

Praça com estátuas mulher negra, criança indígena, José do Patrocínio e princesa Isabel. Centro, Campos dos Goytacazes, RJ. Crédito da imagem:  Rafael Deminices, 2023. [Wikimedia Commons].

O Manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro (1883) é um documento de grande relevância histórica sobre o movimento abolicionista no Brasil, no final do século XIX. Reivindica a liberdade total das pessoas escravizadas do país. O abolicionista José Carlos do Patrocínio (1853-1905), seu criador, desempenhava um papel crucial no movimento de luta pela liberdade dos escravizados. Sua propaganda abolicionista estava alinhada às movimentações de associações abolicionistas que lutavam pelo fim do cativeiro, e até diretamente com a população livre e cativa pelas vias urbanas. Organizou reuniões em espaço público, promoveu peças de teatro sobre a abolição e foi um dos fundadores das conferências-concertos, que eram realizadas em espaços teatrais com declamações de poemas, encenações abolicionistas e discursos políticos. As arrecadações, ao final de cada evento, foram usadas na compra e doações de cartas de alforrias, entregues diretamente no palco para alguns escravizados.

Fotografia de José do Patrocínio em “História da Literatura Brasileira” (1916), de José Veríssimo (1857- 1917). Fonte: Autoria desconhecida, 2013. [Wikimedia Commons].

O “Tigre da Abolição” nasceu no Campos dos Goytacazes (RJ), era formado em farmácia e um dos abolicionistas incansavelmente engajado pela causa. Sua excepcional oratória influenciou pessoas e rendeu-lhe amigos. Realizava discursos acalorados voltados à tribuna popular, nos quais se colocava em defesa do direito dos escravizados. Conhecido por “tigre do abolicionismo”, sua luta era ativa pelas ruas, gostava de levar seus discursos à população, mantinha relações com artistas, escritores e jornalistas próximos à causa abolicionista. Os artigos que escreveu foram assinados com o pseudônimo Zé do Pato, nos quais adotou uma retórica de enfrentamento à elite escravocrata e combate aos interesses das classes dominantes e instituições, como o Estado e a Religião. Denunciava os maus-tratos às pessoas escravizadas e propunha a abolição da escravidão imediata e sem indenização aos proprietários.

Filho da liberta e quitandeira[1] Justina do Espírito Santo, e do vigário João Carlos Monteiro, que foi senhor da própria Justina, não herdou fortuna e não fazia parte da elite imperial. Mas se tornou um grande jornalista, romancista, proprietário e editor de jornal entre os anos 1880 e 1890. Amante da literatura e das artes, escreveu os romances Motta Coqueiro ou a pena de morte (1877), publicado inicialmente no Gazeta de Notícias, um dos principais jornais da época, que angariou alto prestígio, e, por consequência, sua publicação em livro; Pedro Espanhol: romance original (1884), que foi reeditado 130 anos após sua publicação; e Os Retirantes (1889), que aborda a questão da seca no Nordeste.

Por ser negro e filho de uma mulher liberta, viveu na pele os preconceitos do seu tempo. Sofreu perseguição por conta de sua ascendência e foi alvo de difamação pública pelo jurista, crítico literário e sociólogo Sílvio Romero (1851-1914), uma das figuras da época que defendia o branqueamento da população, em 1881. O crítico literário publicou poemas e textos no jornal O corsário relacionando Patrocínio a termos pejorativos e de cunho racista na tentativa de ameaçar seus discursos e ações em favor da abolição e das ideias de igualdade social. Patrocínio permaneceu firme, fazendo da sua pele um dispositivo que dava mais sentido à sua luta. Abriu seu próprio jornal, A Cidade do Rio, que era a trincheira da propaganda abolicionista. De sua redação saiam os artigos de combate à escravidão, tornando-se um reduto de sociabilidade entre os abolicionistas.

 

Denúncias e reivindicações de um manifesto

José do Patrocínio, que estava à frente do jornal Gazeta da Tarde, desde junho de 1881, reuniu 15 sociedades libertadoras de várias partes do Brasil. Como resultado, fundou a Confederação Abolicionista, uma organização política que conferia os ordenamentos de reuniões e conferências em um panorama amplo no Brasil Império. Com esse apoio, julgava que a propaganda abolicionista teria maior alcance e mais respaldo frente ao Parlamento.

Manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro. Fonte: Julyany Paz, 2021. [Wikimedia Commons].

O Manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro, lançado no dia 11 de agosto de 1883, é composto por 22 páginas e consta 15 assinaturas de representantes das entidades abolicionistas que se reuniram para fundar a Confederação Abolicionista. Ele é resultado dessa junção de movimentos, que surge com a proposta de reivindicar a liberdade das pessoas escravizadas, diferenciando-se das demais por reivindicar libertação total e indicar a reforma agrária como importante no pós-abolição.

Esta publicação trouxe para o debate a escravidão como uma instituição injusta e ilegal, defendeu a liberdade natural do ser humano como direito irrevogável e apresenta a liberdade como fundamental para o exercício eficaz das três leis naturais do progresso social: concurso, mutualidade e solidariedade. O manifesto aponta que as tratativas dos ingleses e dos portugueses no cenário do tráfico de escravizados africanos foi um constrangimento para o país, chamando a nossa atenção para o prejuízo da tentativa do Brasil em escamotear a Lei de 7 de novembro de 1831, conhecida como Lei Feijó, que estabelecia o fim do tráfico, e em continuar com suas ações praticando crimes de pirataria. Como o próprio Patrocínio diz no manifesto, a motivação do tráfico era estritamente “para engrossar a população escrava” e satisfazer aos interesses de uma política que não tinha o objetivo de mudar o sistema produtivo e trabalhista.

O documento denuncia as consequências da escravização, enquanto instituição, para o sistema brasileiro e os males da manutenção da propriedade. Enfrentou resistência por parte dos agricultores que desejavam manter a mão de obra escrava em defesa do lucro, que consideravam difícil de sustentar sem os braços africanos. Apresenta a história da escravidão indígena e seu fim; e a africana e sua manutenção, defendendo a igualdade social e a liberdade para todos os seres humanos: os nascidos livres, os libertos e os escravizados.

Demonstrou a partir de dados o funcionamento e a degradação da escravidão para a sociedade. Expunha as atitudes insustentáveis do governo perante a Lei Feijó, que criminalizava o tráfico, e que não foi seguida pelas autoridades da nação, que queriam aumentar a população escrava até o último momento, mesmo que por meios ilegais. Os dados da mortalidade acentuada de pessoas escravizadas durante o tráfico negreiro e as desvantagens das propostas de leis que projetavam a abolição da escravidão de forma gradual também foram apresentados pelo manifesto. Patrocínio entendia que as leis sobre o fim gradual da escravidão não asseguravam a premissa da liberdade como direito imprescindível do ser humano.

A Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, foi a primeira legislação de cunho abolicionista no Brasil imperial, determinando a liberdade dos recém-nascidos de escravizadas. O manifesto a considerou ineficiente e prejudicial às crianças e mulheres. O documento se opunha às várias tentativas de manutenção, considerada infundada, da escravidão, que era associada à violência, insalubridade e omissão dos direitos das pessoas escravizadas.

O manifesto foi largamente divulgado, especialmente no auge da propaganda abolicionista, que ocorreu a partir de 1879. Representou a luta árdua e incansável do movimento. Foi um sucesso editorial, que alcançou 18 mil cópias entregues gratuitamente ao público. Atingiu o objetivo de chegar aos leitores de todas as camadas sociais. O manifesto fez barulho! Chegou a competir com literaturas altamente valorizadas à época, como O Guarani (1857) de José de Alencar (1829-1877). O texto era utilizado como discurso nos atos do movimento abolicionista nas ruas e nas demais oportunidades que houvesse.

Patrocínio defendia a relevância da propaganda abolicionista e o direito dos abolicionistas no empenho de ações sociais contra o sistema escravocrata. O movimento era frequentemente atacado por políticos conservadores, que consideravam suas ações anárquicas, promovendo a desordem e a revolta popular. Os ataques não fizeram Patrocínio recuar. Ele expõe a importância e a legalidade da propaganda abolicionista frente aos parlamentares opositores. Apresentava a causa como expressão do progresso e aconselhava que os delegados do povo se dispusessem, ao menos, a ouvir as propostas do movimento.

O manifesto humaniza os escravizados, destacando os sofrimentos causados pelas condições horríveis em que viviam e trabalhavam. Patrocínio ressaltou a avareza dos proprietários que mantinham os escravizados doentes em cativeiro. As condições desumanas do comércio de exploração sexual das mulheres escravizadas era um aspecto que o impactava como pessoa negra e abolicionista. Denunciou as falcatruas nos registros de trabalho dos cativos que viviam em meio urbano, mas que eram matriculados na categoria de serviço rural para aumentarem o ganho de aluguéis dos próprios proprietários. Destemido, nomeou a elite escravocrata e os proprietários como criminosos, que estavam dispostos a manter uma nação no atraso para atender aos próprios interesses, decretando, por outro lado, o extermínio de uma população.

O manifesto se valeu das vias jurídicas para denunciar a escravidão como um crime. A divulgação do documento pelas ruas do Rio de Janeiro teve um papel crucial na propaganda abolicionista mais combativa, sob a liderança de José do Patrocínio.  Acusar a escravidão como ilegítima e desumanizadora era uma retórica muito particular a esse movimento do grupo de abolicionistas ligados a Patrocínio. Com esta proposta de pensar a ilegalidade da escravidão e o direito à liberdade como algo imprescindível do ser humano, o manifesto tinha como principal intuito apresentar detalhes sobre a ineficácia de leis que propunham o fim gradual da escravidão. Mostrou que o crime de manutenção tanto da escravidão quanto do tráfico de escravizados era desumano e lesava a pátria, o que prejudicava o progresso social.  A retórica combativa de Patrocínio, expressa no manifesto, convidava os representantes da nação para que levassem em consideração os direitos à liberdade humana, que só poderia ocorrer com o fim da escravidão.

Notas

[1] As quitandeiras eram mulheres escravizadas ou libertas que vendiam frutas, legumes, temperos e lanches nas ruas da cidade, como forma de garantir seu sustento, e também de juntar dinheiro para a compra de alforria.

Referências

ALONSO, Angela. Flores, Votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

DRESCHER, Seymour. Caminhos para a abolição. In: STOLZE, Ivana Lima; GRIMBERG, Keila; REIS, Daniel Aarão (org.). Instituições nefandas: o fim da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018.[Gratuito na Amazon].

GUIMARÃES, Eduardo. Ética e argumentação abolicionista: (anotações a um texto de José do Patrocínio). Rua, Campinas, v. 26, n. 1, jun. 2020. DOI: 10.20396/rua.v25i1.8658679. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8658679. Acesso em: 9 out. 2024.

PATROCÍNIO, José do. Manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro. Typ. Da Gazeta da Tarde: Rio de Janeiro, 1883.

PINTO, Ana Flávia Magalhães. José do Patrocínio: abolição, racismo e uma pedra no caminho chamada Sílvio Romero. In: PINTO, Ana Flávia Magalhães; CHALHOUB, Sidney (org.). Pensadores negros pensadoras negras: Brasil, séculos XIX e XX. 2. ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2020.

SILVA, Ana Carolina Feracin da. De “papa-pecúlios” a Tigre da Abolição: a trajetória de José do Patrocínio nas últimas décadas do século XIX. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.

SOUZA, Marcos Teixeira. José do Patrocínio: um abolicionista na ficção e na vida. Revista de Letras, Curitiba, v. 15, n. 17, p. 1-12, 2013. DOI: 10.3895/rl.v15n17.2387. Disponível em: https://periodicos.utfpr.edu.br/rl/article/view/2387. Acesso em: 9 out. 2024.

Como citar este artigo

SILVA, Keicy Salustiano Duarte. José do Patrocínio, o “Tigre da Abolição”, e seu Manifesto combatente. História Editorial, v. 1, n. 1, 19 out. 2024. DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.13953658. Disponível em: https://historiaeditorial.com.br/jose-do-patrocinio-o-trigre-da-abolicao-e-seu-manifesto-combatente. Acesso em: 19 out. 2024.

Keicy Salustiano Duarte Silva

Graduada em História pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Mestra em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutoranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
 

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