RADAR DA IMPRENSA |

Congresso do Negro Brasileiro pela imprensa branca

A negligência da imprensa ao I Congresso do Negro Brasileiro revela como as lutas e memórias do povo negro seguem relegadas às margens da relevância nacional

Edison Carneiro discursando na sessão de enceramento do I Congresso do Negro Brasileiro. Fonte: Osvaldo Costa/ Agência Nacional. 1950. [Arquivo Nacional].

O I Congresso do Negro Brasileiro foi um marco na história do país e da luta antirracista ao colocar a população negra no centro do debate político na década de 1950. O evento trouxe à tona pautas e reivindicações fundamentais para refletir sobre os problemas que reforçavam a exclusão e a marginalização das pessoas negras na sociedade brasileira. Organizado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), o congresso reuniu intelectuais, artistas, trabalhadores e pesquisadores para discutir temas como educação, mercado de trabalho, discriminação racial, identidade cultural e direitos civis. Também propôs ações concretas no enfrentamento às desigualdades criadas pelo racismo, construindo um espaço para a articulação política, fortalecendo o debate público das décadas seguintes.

O evento, realizado entre os dias 26 de agosto e 4 de setembro de 1950, no Rio de Janeiro (RJ), reuniu intelectuais renomados e setores da população negra com o intuito de discutir temas dos eixos temáticos relacionados à história, cultura e religiões afro-brasileiras e propor estratégias que permitissem o acesso dessa população a direitos historicamente negados. Entre os intelectuais, destacam-se Abdias do Nascimento (1914–2011), Alberto Guerreiro Ramos (1915–1982) e Edison Carneiro (1912–1972), que estiveram à frente da organização do congresso e desempenharam papel fundamental na articulação política e cultural que o marcou como um importante espaço de reivindicação e afirmação da identidade e da luta negra no país. 

Nessa edição da seção Radar da Imprensa, analisamos como o I Congresso do Negro Brasileiro apareceu na mídia no último ano, considerando que o evento completou 75º anos de sua realização. Devido ao pouco destaque desse evento na imprensa brasileira, foi necessário ampliar a busca do radar semanal para anual, com o intuito de identificar publicações que mencionasse o evento, ainda que de maneira indireta ou em contextos comemorativos, como o Novembro Negro, na qual analisamos seis matérias entre 14 de junho e 16 de novembro de 2025. 

A imprensa branca e a invisibilização da história negra

A imprensa brasileira não colocou o Congresso em evidência, apesar de sua importância para a história do país e dos debates sobre as questões raciais. Há um apagamento de sua história no debate público, suas conquistas, desafios e as pautas que marcaram o encontro, bem como a luta contínua contra o racismo. A pouca visibilidade observada nas publicações denuncia a invisibilização da memória do congresso e evidencia, ao mesmo tempo, que os veículos de comunicação frequentemente negligenciam os fatos históricos que podem ajudar os leitores a fazerem uma releitura da história da população negra. Esse posicionamento mostra como certos episódios permanecem à margem dos debates na esfera pública, como se não fizessem parte da história do Brasil.

A maioria das matérias em circulação sobre o congresso está restrita à região Sudeste, o que limita o alcance dessas discussões, impossibilitando que outras perspectivas e experiências negras do país sejam reconhecidas e valorizadas. A população negra, que corresponde a 55,4% (entre pretos e pardos) da população brasileira, precisa conhecer a história do congresso, não apenas pelas produções acadêmicas, como por uma mídia hegemonicamente branca que deve assumir um compromisso com as práticas antirracistas, em especial das regiões Norte e Nordeste, onde vive grande parte da população negra. Estamos nos referindo a pessoas que não têm acesso a essas discussões nas redes de ensino ou redes sociais, que são manipuladas pelo algoritmo que filtra o que vemos e lemos, o que contribui para a perpetuação do racismo e manutenção dos privilégios de pessoas brancas.

Dentre as notícias que circularam nos últimos meses, destacamos que o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) organizou uma transmissão ao vivo no canal do YouTube Pensar Africanamente, no dia 4 de setembro de 2025, para um debate em comemoração aos 75 anos do congresso . A live contou com a participação do historiador Muryatan Barbosa, da Universidade Federal do ABC (UFABC), da historiadora e apresentadora do canal Silvany Euclênio Silva, de Elisa Larkin Nascimento, cofundadora do IPEAFRO e viúva de Abdias do Nascimento, e do jornalista e historiador Júlio Meneses Silva, coordenador do projeto Museu de Arte Negra (MAN-IPEAFRO) no ambiente virtual. O IPEAFRO foi fundado em 1981 por Nascimento e Larkin, atuando na preservação da memória e na promoção da cultura afro-brasileira, o que contribui para a difusão do pensamento negro por meio de projetos de pesquisa, ação política e fortalecimento das identidades negras.

Matéria “Cartazes históricos do movimento negro serão digitalizados e expostos”. Fonte: Agência Brasil. 2025.

No dia 17 de novembro de 2025, o IPEAFRO e o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) fizeram uma parceria para digitalizar mais de 250 cartazes históricos do acervo do instituto, com o objetivo de preservar e difundir a memória afro-brasileira por meio de exposições e debates. Essa iniciativa está dentro do “Biênio Abdias Nascimento (2024-2025)”, que objetiva homenagear o legado de Abdias do Nascimento e algumas das organizações por ele fundadas, como o TEN e o congresso que é citado como ação catalisadora para a fundação do Museu de Arte Negra (MAN) e do próprio IPEAFRO, em 1981. Na matéria Cartazes do movimento negro serão digitalizados e expostos, da jornalista Alice Rodrigues, publicado pelo site Francês News, apesar de mencionar o congresso como referência histórica, dá mais destaque ao IPEAFRO, reforçando uma narrativa em que o evento é lembrado apenas como ponto de partida simbólico, enquanto sua historicidade e seus múltiplos protagonistas permanecem pouco explorados e invisibilizados, tornando o evento apenas um marco fundador e apagando a pluralidade de atores, debates e contradições que marcaram sua realização em 1950.

O congresso foi mais do que disputas de narrativa. Nele se projetou um futuro em que a população pudesse ter sua presença garantida em lugares que historicamente foram garantidos aos brancos. A memória e a história deveriam ser preservadas com a criação do MAN, segundo a matéria Ipeafro e MAST firmam parceria para preservar acervo histórico do movimento negro com mais de 250 cartazes, da jornalista Thayná Santana do Alma Preta, e a mencionada anteriormente. Mas, não encontramos em nosso banco de dados, que resultou no artigo de divulgação científica Um congresso para o povo negro, nenhuma informação sobre isso nas mais de setenta matérias lidas e transcritas, nem a jornalista sinalizou a fonte consultada. 

Uma história da ausência

Na matéria Maria Nascimento em defesa das empregadas domésticas, publicada pelo jornal Metrópoles, em 14 de junho de 2025, o leitor é apresentado à trajetória de Maria de Lourdes Vale  Nascimento (1924–1995), que nos anos 1940 denunciava as condições de exploração das trabalhadoras domésticas e exigia o reconhecimento da categoria. O texto destaca brevemente que, em maio de 1949, Maria organizou e presidiu o Congresso Nacional de Mulheres Negras. Também é mencionado que sua atuação se articula com o TEN, do qual foi uma das fundadoras ao lado de Abdias do Nascimento, seu companheiro à época. O congresso é citado como um dos responsáveis pela reivindicação de direitos já na década de 50. Mas, a matéria não menciona a contribuição da advogada Guiomar Ferreira de Matos, autora da tese A Regulamentação da Profissão de Doméstica, na apresentação desse debate no congresso, no dia 1 de setembro de 1950, realizando uma contribuição oral sobre o trabalho doméstico exercido majoritariamente pelas mulheres negras durante a escravidão e após sua abolição, em 13 de maio de 1888.  

Fotografia de Laudelina de Campos Melo. Fonte: Wikipédia. 2020.

A notícia também desconsiderou o pioneirismo de Laudelina de Campos Melo (1904–1991), que, desde 1936, em Santos(SP), já articulava a organização das trabalhadoras domésticas por meio da criação da Associação Profissional Beneficente das Empregadas Domésticas, buscando o reconhecimento jurídico da categoria por direitos trabalhistas historicamente negados no Brasil. Essa iniciativa estava vinculada ao fortalecimento de alianças com o movimento sindical-classista e com a Frente Negra Brasileira (FNB), o que demonstra que a luta das trabalhadoras domésticas também era uma crítica às péssimas condições de trabalho e à exploração da população negra, em especial as mulheres. 

Trajetórias como a de Maria de Lourdes e Laudelina ajudam a compreender que as mulheres negras foram responsáveis pela construção de um movimento histórico para reivindicar seus direitos trabalhistas muito antes desse debate ganhar a esfera pública, virar objeto de políticas públicas e tornar-se direitos garantidos pela legislação brasileira, como ocorreu com a promulgação da Lei nº 5.859 de 11 de dezembro de 1972, que reconheceu formalmente o trabalho doméstico, garantindo carteira assinada, férias remuneradas e inscrição na Previdência Social. O debate sobre o protagonismo de determinados sujeitos históricos, especialmente aqueles vinculados a grupos minoritários, precisa ser feito com cuidado no espaço e nos debates públicos, caso contrário  podem reproduzir apagamentos e desigualdades, o que torna incontornável e urgente esse movimento de intervenção dos historiadores em espaços de divulgação e promoção do debate público.

Referências

Matérias de jornais consultadas

BARBOSA, Rafaela. Ipeafro celebra 75 anos do 1º Congresso do Negro Brasileiro com live gratuita no canal Pensar Africanamente no dia 4 de setembro. Expresso RJ, Rio de Janeiro, 2 set. 2025. Disponível em: https://expressorj.com.br/noticia/4770/ipeafro-celebra-75-anos-do-1-congresso-do-negro-brasileiro-com-live-gratuita-no-canal-pensar-africanamente-no-dia-4-de-setembro. Acesso em: 19 nov. 2025

CARTAZES do movimento negro serão digitalizados e expostos. Francês News, 9 nov. 2025. Disponível em: https://francesnews.com.br/post/2025/11/25/5474-cartazes-do-movimento-negro-serao-digitalizados-e-expostos. Acesso em: 19 nov. 2025.

MIGUEL, Marco. Maria Nascimento em defesa das empregadas domésticas. Metrópoles, Brasília, 14 jun. 2025. Disponível em: https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/maria-nascimento-em-defesa-das-empregadas-domesticas. Acesso em: 19 nov. 2025.

RODRIGUES, Alice. Cartazes históricos do movimento negro serão digitalizados e expostos. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 9 nov. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-11/cartazes-historicos-do-movimento-negro-serao-digitalizados-e-expostos. Acesso em: 19 nov. 2025.

THAYNÁ, Santana. Debate on-line reflete sobre os 75 anos do 1° Congresso do Negro Brasileiro. Alma Preta, São Paulo, 2 set. 2025. Disponível em: https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/debate-on-line-reflete-sobre-os-75-anos-do-1-congresso-do-negro-brasileiro/. Acesso em: 19 nov. 2025.

THAYNÁ, Santana. Ipeafro e MAST firmam parceria para preservar acervo histórico do movimento negro com mais de 250 cartazes. Alma Preta, São Paulo, 16 nov. 2025. Disponível em: https://almapreta.com.br/sessao/cultura/ipeafro-e-mast-firmam-parceria-para-preservar-acervo-historico-do-movimento-negro-com-mais-de-250-cartazes/. Acesso em: 19 nov. 2025.

Outras referências

OLIVEIRA, Anderson Douglas Dias de; SANTANA, Geferson. Um congresso para o povo negro. História Editorial, 19 nov. 2025. (Artigo de divulgação). Disponível em: https://historiaeditorial.com.br/um-congresso-para-o-povo-negro. Acesso em: 19 nov. 2025.

BERNARDINO-COSTA, Joaze. Decolonialidade e interseccionalidade emancipadora: a organização política das trabalhadoras domésticas no Brasil. Sociedade e Estado, Brasília, v. 30, p. 154-159, jan./abr. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/tjznDrswW4TprwsKy8gHzLQ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 22 nov. 2025.

Como citar este artigo

OLIVEIRA, Anderson Douglas Dias de. Congresso do Negro Brasileiro pela imprensa branca. História Editorial, 24 nov. 2025. (Radar da Imprensa). Disponível em: https://historiaeditorial.com.br/congresso-do-negro-brasileiro-pela-imprensa-branca/. Acesso em: 24 nov. 2025.

Anderson Douglas Dias de Oliveira

Estudante do curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Suas áreas de interesse incluem Ensino de História, História da Arte, Gênero e Sexualidade e História Contemporânea. É bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), desde 2023.

*Matéria produzida sob a supervisão do Prof. Dr. Geferson Santana, como parte das atividades do programa Editor Aprendiz.

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