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A Divisão de Memória Institucional da UFRJ lançou, em 2024, uma exposição virtual que publiciza memórias sobre a ditadura civil-militar e seu impacto na comunidade acadêmica
Em contextos ditatoriais, caracterizados por um maniqueísmo polarizador, censura, repressão e a supressão de memórias alternativas, a cientista social Elizabeth Jelin (1941–) observa que as narrativas oficiais, promovidas e celebradas pelo próprio regime, encontram poucos obstáculos na esfera pública. Apenas com a abertura política e os processos de democratização é que essas memórias alternativas — antes reprimidas, censuradas, marginalizadas, proibidas e clandestinas — podem ser incorporadas à nova esfera pública, que revela a emergência e a complexificação de novos debates.
Sobre o período da ditadura civil-militar brasileira, há uma batalha de memórias caracterizada por representações opostas e polarizadas da própria ditadura. A repressão, a violência política e o desrespeito sistemático aos direitos humanos marcaram os anos de chumbo, mas também vimos a fase de crescimento econômico, a criação de empregos e a suposta manutenção da ordem social, conhecida como os “anos de ouro”. Duas memórias distintas e antagônicas entre si.
Houve narrativas seletivas que alimentaram disputas retóricas, com uma narrativa tentando se sobrepor à outra. Apesar da produção acadêmica ser abundante, o campo da memória tem ganhado força na identidade de diversos grupos da sociedade civil, cada qual interpretando e ressignificando o período da ditadura de acordo com suas próprias perspectivas. Estas versões variam conforme as correntes ideológicas e incluem tanto setores progressistas quanto conservadores, não se restringindo ao bolsonarismo. Essas interpretações divergentes geram batalhas pela memória nas esferas públicas e institucionais, nas quais diferentes grupos tentam legitimar suas visões sobre o passado.
Essa história de polarizações e disputas de memórias convida-nos a informar a sociedade civil sobre os abusos, as repressões e violações de direitos humanos do período. Ao incorporar memórias alternativas, que foram silenciadas durante o regime ditatorial militar, enriquece-se o debate público, promovendo uma compreensão mais completa da história nacional, e, assim, prevenindo a repetição de práticas autoritárias nos tempos atuais.
Exposições da Divisão de Memória Institucional da UFRJ
Essas memórias alternativas podem ser observadas nos espaços universitários. A repressão ditatorial na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, resultou em forte impacto na liberdade acadêmica, afetando bibliotecas, professores e pesquisas, especialmente nas áreas de ciências humanas e sociais. Além da censura, estudantes e docentes foram vítimas de desaparecimentos e assassinatos. Entre 1964 e 1985, 45 professores foram cassados, especialmente após o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968.
Desde 2014, quando se completaram 50 anos do golpe militar no Brasil, a Divisão de Memória Institucional (DMI) do Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) da UFRJ começou a desenvolver análises e pesquisas nos acervos universitários internos e de outras instituições sobre os impactos desse período da história nacional na universidade, em que houve diversas perseguições e expurgos de técnicos administrativos, docentes e estudantes.

Renomado intelectual e diplomata, Josué de Castro (1908–1973) foi um dos primeiros professores universitários da instituição a ter seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional nº 1, em 1964. Anos mais tarde, Lincoln Bicalho Roque (1945–1973) foi atingido pela repressão e vítima de uma aposentadoria compulsória administrada pelo AI-5, em 1969, passando a viver na clandestinidade. Além deles, destacam-se Maria Laura Mouzinho Leite Lopes (1917–2013), primeira mulher a se doutorar em Matemática no país, Elisa Frota Pessoa (1921–2018), segunda mulher a se formar em Física no Brasil, entre outras personalidades.
Em 2022, a DMI começou a realizar a curadoria, montar e divulgar exposições de forma virtual. Esse processo incentivou o uso de uma nova ferramenta pedagógica e de divulgação científica para as pesquisas realizadas pela equipe de estudantes de Iniciação Científica (IC) e servidores, e estabeleceu um novo paradigma para a história pública da UFRJ. Até o momento, foram produzidas seis exposições virtuais, abordando diferentes temáticas relacionadas à história da universidade, à sua memória institucional, aos seus sujeitos e ao seu patrimônio.
A mais recente exposição virtual de 2024 foi Os 60 anos de 1964 e os impactos na UFRJ. Inaugurada em 25 de abril, a exibição revelou a vigilância constante sobre a comunidade universitária, promovida por gestores e órgãos de controle do regime, como inquéritos policiais militares e o Serviço Nacional de Informação (SNI). Além disso, a exposição também documentou a resistência promovida por movimentos sociais e detalhou as perseguições sofridas pelo corpo social da instituição.

Logo após o golpe de 1964, dois professores da antiga Universidade do Brasil (UB), hoje UFRJ, foram presos: o físico Plínio Sussekind da Rocha (1911–1972) e Manoel Isnard de Souza Teixeira (1912–1998), professor da Escola de Enfermagem. Em agosto do mesmo ano, o físico José Leite Lopes (1918–2006) também foi detido. Entre 1969 e 1974, 24 estudantes e 2 professores da universidade despareceram ou foram assassinados por agentes da ditadura, conforme o relatório da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (CEMD).
Diversos professores foram cassados pela instituição, e alguns tiveram suas aposentadorias decretadas de forma compulsória, enquanto outros se aposentaram voluntariamente. Entretanto, a reposição do quadro docente não ocorreu na mesma velocidade, mesmo após o fim do regime de cátedra. Como consequência, a pesquisa acadêmica foi duramente enfraquecida em unidades como o recém-criado Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), o que resultou na ausência de defesas de dissertações no campus até 1982.
O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos (1935–2019) teve um dos casos de aposentaria compulsória sob a acusação de subversão. Embora não tenha sido preso, foi incluído na Lei de Segurança Nacional (LSN), teve suas obras confiscadas e enfrentou longos períodos de desemprego. Durante a ditadura, sobreviveu como tradutor e enfrentou vigilância constante no Brasil e no exterior. Mesmo com a repressão, manteve sua carreira acadêmica, tornando-se uma figura central na ciência política brasileira.

O sociólogo Darcy Ribeiro (1922–1997) foi cassado pela instituição e teve seus direitos políticos suspensos, sendo demitido de seus cargos na universidade e no governo. Com a promulgação do AI-5, foi preso por nove meses. Exilado em países como Uruguai, Chile e México, trabalhou como professor e assessor político. Retornou ao Brasil em 1976, sendo anistiado em 1980. Voltou a lecionar na UFRJ e seguiu atuando na política, deixando um legado marcante na educação e na defesa dos direitos indígenas.
As trajetórias desses e de outros docentes exemplificam a diversidade de profissionais afetados, sendo forçados à clandestinidade. Apesar dos esforços para silenciar suas vozes dissidentes, o legado de luta por direitos humanos e o compromisso com causas humanitárias prevalece, demonstrando a resistência e a resiliência diante das adversidades impostas pela ditadura. Essas histórias, marcadas por perseguição e tragédia, testemunham a coragem daqueles que se opuseram a um regime autoritário em busca de liberdade e justiça.
Nesse contexto, as exposições virtuais da DMI desempenham um papel crucial no enriquecimento do debate público sobre a ditadura civil-militar brasileira ao trazer à tona memórias antes marginalizadas e silenciadas. Ao expor narrativas que documentam a repressão, a resistência e os impactos desse período na universidade, as mostras contribuem para uma compreensão mais ampla e crítica da história nacional. Essa abordagem permite que novos públicos acessem informações históricas detalhadas, promovendo a reflexão sobre as consequências do autoritarismo e a importância da defesa da democracia.
A utilização de tecnologia para disponibilizar essas exposições virtualmente amplia o alcance das iniciativas do DMI, democratizando o acesso ao conhecimento produzido na instituição e fortalecendo a extensão a partir do diálogo entre academia e sociedade. Essas mostras virtuais não apenas preservam a memória institucional da UFRJ, como também contribuem para a conscientização coletiva sobre os perigos do autoritarismo e a necessidade contínua de assegurar a permanência do sistema democrático. Essa iniciativa da UFRJ se consolida como uma ferramenta vital na construção de uma memória histórica que preza pela justiça, verdade e reparação.
CORDEIRO, Janaína Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o governo Médici. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 22, p. 85-104, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-21862009000100005. Acesso em: 12 mar. 2023.
DEZEMONE, Marcus. 1964 e as batalhas de memória 50 anos depois. Revista Maracanan, n. 11, p. 56-67, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12957/revmar.2014.14305. Acesso em: 20 fev. 2023.
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. 2. ed. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2012.
REGO, Lucas Barroso. Exposição da Divisão de Memória Institucional da UFRJ sobre memórias da ditadura. História Editorial, v. 2, n. 2, 10 set. 2025. DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.17089177. Disponível em: https://encurtador.com.br/wfkBE. Acesso em: 10 set. 2025.
Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com Bolsa Nota 10 da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Especialista em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e o mundo do trabalho e em Currículo e prática docente nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, ambos pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Licenciado em História pela Universidade Candido Mendes (UCaM), licenciado em Pedagogia pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi) e bacharel em História pela UFRJ.
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